Loureiro, Pedro / Escritor
«O quarto grau da poesia lÃrica é aquele, muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização. Não só sente, mas vive os estados de alma que não tem diretamente. Em grande número de casos, cairá na poesia dramática, propriamente dita, como fez Shakespeare, poeta substancialmente lÃrico erguido a dramático pelo espantoso grau de despersonalização que atingiu. Num ou noutro caso continuará sendo, embora dramaticamente, poeta lÃrico.», é isso que nos diz Fernando Pessoa em um fragmento intitulado “Os graus da poesia lÃrica”, e que neste livro singular de Pedro Loureiro podemos entrever, porém com uma diferença em relação ao gênero de poesia dramática tradicional, já que em muitos diálogos as personagens não podem ser previamente conhecidas, deixando-nos um espaço vago que é, afinal, a possibilidade de um campo aberto — palco onde a literatura pode ser um acontecimento. Nesse campo é gerada uma tensão pela própria impossibilidade de um saber prévio (quem afinal está falando, quem está respondendo, há alguém que podemos conhecer?) e um desconcerto muito próximo do onÃrico (as notas de rodapé reforçam a estranheza ao invés de elucidá-la), embora possamos suspeitar que esse onÃrico, no caso desses diálogos, seja apenas mais uma das inúmeras janelas do absurdo.
A escolha do diálogo para esta obra de poesia dota-a de uma amplidão de vozes na qual uma fina ironia, por vezes, deixa implÃcita uma capacidade de visão do poeta em relação a temas valorosos da história, da metafÃsica, da mitologia e da arte, não como uma discussão ensaÃstica, mas a partir dos próprios seres que a engendraram. Giorgio Coli, em sua obra O nascimento da filosofia, aponta que «Platão inventou o diálogo como literatura, como um particular tipo de retórica escrita, que apresenta num quadro narrativo os conteúdos de discussões imaginárias a um público indiferenciado. Este novo género literário recebe do próprio Platão o novo nome de “filosofia”». No caso, a referência a um dos mais famosos diálogos do filósofo grego, O Banquete, torna explÃcita a referência ao gênero inaugurado por Platão, mas aqui a diferença é que Pedro Loureiro não assume a posição de um «filósofo» (um amante da sophia), mas sim a posição abandonada pelo próprio Platão: a de um poeta. Ou seja, de alguém que não se apresenta como portador do logos, mas apenas como um meio, como uma abertura que, à medida que se abre, esconde o próprio rosto.
Os diálogos deste O banquete da chanfana de Séneca aos rojões de Nietzsche não são constituÃdos como fios que nos conduzem a uma conclusão, como alguma verdade que pudesse ser atingida por uma ascese do discurso. Pelo contrário, a verdade dos diálogos (quando ela se propõe a existir) surge ao modo de uma revelação, tal qual um antigo oráculo (Quis o amor/Que a morte/Fosse o esquecimento) ou uma sentença da ordem dos mistérios (Aos homens resta-lhes/Uma imitação de sangue/Um desejo de regresso ao informe). Isso tudo entrecortado por momentos de pura sensorialidade como no caso de Ares & Afrodite (Se ao acordares/Eu aqui não estiver/Contenta-te com tua mão/Ou o que mais te aprouver). Com isso, afasta-se do diálogo platônico e aproxima-se da poesia dramática, tal qual em Diálogos com Leucó de Cesare Pavese, ainda que este mantivesse a presença efetiva das personagens em uma estrutura mais tradicional.
O Banquete inaugura na trajetória literária de Pedro Loureiro um novo momento, em que a voz escapa de uma escrita de si para uma região mais ampla, mais indefinida também, o que em termos de poesia é sempre um encontro, um acontecimento e uma possibilidade. Em outros termos, a dimensão de uma experiência.
Augusto Meneghin