Alves Cardoso, Rosário / Escritor
Um jardim é um lugar. E um lugar é o onde-quando em que o tempo e o espaço se cruzam para fazer-se hábito. Mas o hábito — o fazer-se significado até do absurdo — não é algo que permaneça, que se essencialize ou que se transcenda. O hábito, num lugar, é o que persiste na transformação.
O jardim de Rosário Alves Cardoso é um lugar em que o hábito se faz no entre: num espaço e num tempo amplos e demorados, onde as coisas fervilham, levitando, entre uma e outra coisa. “Por isso pairas,/Bem longe do que és/E não és balão sequer.”
O entre, esta distância entre as coisas contrárias, é uma casa. E habitá-la não parece fácil. “Entrem. Fiquem. Bem-vindos ao jardim”, somos assim convidados, talvez por alguém que amanheceu estátua e cuja existência é apenas sinalizada por “pontas de cigarros intermitentes”. Entrar, poderÃamos dizer, é estar no entre. Este não é um convite fácil. Mas entramos. E encontramos então poemas murchando, um pouco por todo o lado.
O que será isto de poemas que murcham? Imagino então palavras que levitam — como algo entre um grito e um suspiro, entre o dado e o indizÃvel — e que depois caem na terra húmida, virando húmus. Os poemas murchos são linguagem que habita o entre: o crepúsculo entre a noite e o dia, o cruzamento entre a vida e a morte, a ponte entre a vigÃlia e o sonho, o “cheio vazio” e o “vazio cheio” entre o tudo e o nada, o “imprevisto cósmico” entre o absurdo e o dogma e a “ausência da comunhão do todo” entre o ego e o comum.
No Jardim onde os poemas murcham a poesia é matéria viva e morta, onde as coisas se encontram e se misturam. Os poetas são “necrófagos da experiência humana” e do mundo. E os leitores são “abutres que se alimentam do poeta morto”.
“Escavo e escrevo até o coração bater apenas/Pelas cordas tendinosas que o sustentam./Sou só ridÃculo/E gosto da audiência desta morte transmitida”.
Entramos. E a meio das estátuas, das flores várias, da areia e deste húmus, descobrimos que o jardim do entre é também o lugar da alteridade. E que este lugar se pode habitar de várias formas. Com indiferença, soberba e sarcasmo. Ou com empatia — esse gesto que se deleita no esforço do impossÃvel. Rosário Alves Cardoso parece conhecê-las a todas e parece ter escolhido a sua.
“Ninguém chorou por ti,/Nem pegou na tua mão cerrada./Dormiste até adormecer.//Não te sou ninguém./Mas chorei por ti.//Amanhã há mais”
Miguel Oliva Teles