Portulez, Rui / Escritor
Na declarac¸a~o de intensões assim mesmo com que abre Hamsterdão, e alguns desapontamentos de poesia to´pica, Rui Portulez trincha a poesia em cima de uma mesa de mistura e tempera-a com um raminho de ervas confessionais: a meu favor/muitas canc¸o~es de amor/versos que só eu sei de cor/e pouco mais.
Para muitos, Amsterdão é aquele lugar onde se vai em busca de um café simpático, onde se possa enrolar um charro sem ter a poli´cia a` perna ou, para os mais dados a confortar o estômago, uns bolinhos com ingredientes extra. Para Portulez, que trata de inventar aqui a sua própria cidade, esta será um pouco a terra de todos nós, uma utopia nebulada onde usamos espressões/em série/de televisa~o, esperando pelo anúncio da próxima rodada/para voltar a encher o copo.
Recusando fazer a revoluc¸a~o no sofá, Rui Portulez dispara em várias direcc¸o~es, soprando a nuvem de forma difusa a que chamamos cloud, definindo a (nova) imortalidade como o acaso de alguém tropec¸ar em no´s, caminhando pela terra do like tentando não ficar enleado na sobredose de informaça~o ou no extenso rol de cenas que nela habitam. A rádio, essa continua a merecer os mais rasgados elogios, uma forma de resistência que caminha em ondas hertezianas: ha´ gente tresmalhada/energia e bons refrões/em transferência modelada.
Em tempos de enfiar a cabec¸a na areia ou no forno, as dúvidas chegam a perturbar até o espírito mais irrequieto: vale a pena insistir?/vale a pena resistir?/vale a pena um bom refrão?/vale a pena outra canc¸a~o?/vale a pena apresentar reclamac¸a~o?. Como começar, então, a revoluc¸a~o que a todos toca, tirando o caruncho a um reino que esta´ ta~o podre quanto o da Dinamarca imortalizada por Shakespeare? Talvez começando por aqui: ha´ que levantar o cu´ do sofa, ya/e os olhos do umbigo.
Como muleta ou consolo, teremos sempre a mu´sica e o vinho: e´ urgente convocar/o cancioneiro popular/e deixar a porta aberta/ao desvario e fruic¸a~o/da pop descoberta/a` cança~o de intervença~o/a` loucura e ao protesto/brindo de copo na mão/emborco tudo de resto.
Anos depois de Rima, não rima?, livro de poesia para adultos descomprometidos com letras que dariam canções para gravar um novo disco para meninos, Rui Portulez faz do verbo fazer o motor da revolução: fazer de conta/fazer por fazer/fazer por dever/é coisa de valor!. O livro fecha-se, mas a janela com vista para esta Hamsterdão comum fica aberta. Saltemos.
Pedro Miguel Silva
in Deus Me Livro