Almeida Freire, Manuel / Escritor
Este livro de Manuel Almeida Freire foi escrito no decurso de duas pestes mortÃferas (a pandemia do vÃrus Covid-19 e a guerra suja de Putin) e de outra ainda mais mortÃfera (a anunciada peste climática, que tudo indica ir pôr fim à vida no planeta que habitamos).
Este pano de fundo convoca indignação e, no caso de haver talento disponÃvel, a expressão acutilante dessa indignação. O horror que defrontamos não se compadece com uma linguagem penteada e vigiada, antes sugere, com grande força e acinte, o uso deliberado daquele calão feio, do qual o grande poeta americano Carl Sandburg dizia que ele é “a linguagem que arregaça as mangas, cospe nas mãos e vai à vida”.
O autor deste livro usa o verso livre, que notáveis poetas do século xx rejeitaram, mas que outros, igualmente notáveis, acolheram.
O verso livre acomoda bem a linguagem brutal, vingativa e assassina, que se impõe, como reacção inútil mas incontornável, ao pesadelo que vivemos e promete ser terminal.
O verso livre e indignado é aquela espécie de “gaguez organizada”, de que falava Marshall McLuhan, a propósito de linguagem, e que esta, de Manuel Freire, é, muito em particular, bom exemplo.
W.H. Auden definia a poesia como “a expressão clara de sentimentos confusos”. O verso livre do autor deste livro nunca deixa de ser claro, mesmo quando glosa a grande confusão que nos cerca e os sentimentos contraditórios que nos visitam. Sandburg, a que já atrás recorremos, dizia que a poesia é misturar jacintos com biscoitos. A poesia fala-nos, realmente, muitas vezes, de “aproximações” improváveis ou bizarras: estas poderão confundir-nos, mas a linguagem que no-las veicula não deve acrescentar à confusão: deve ser clara, para nos permitir visitar a complexidade e o contraditório, sem nos perdermos pelo caminho.
A “linguagem afiada”, de que nos fala um poema deste livro, é isto mesmo: clara, na sua acutilância bem afiada e vingadora.
Eugénio Lisboa