Fernandes, João Albano / Escritor
Que razões terão levado Florêncio, o protagonista de O Lixo dos Outros, a deixar de falar com a sua filha, Mariana, de 30 anos? Que mundos - ou serão preconceitos? - os separam? Que é feito da alegria que evoca quando vê as fotografias, sorriso de orelha a orelha, de quando ela tinha 5 anos?
Florêncio tem 55 anos e é cantoneiro há 15. Por noite, recolhe mais de cinco toneladas de lixo. Actualmente, cada pessoa produz, em média, 65 metros cúbicos de lixo por ano - o lixo suficiente para encher o volume da própria casa. As pessoas afogar-se-iam no seu próprio lixo se não fossem os cantoneiros.
Florêncio não fala com a filha há quase um ano, não aceita aquilo que ela faz. A profissão mais antiga do mundo, dizem uns. A profissão mais degradante de todas, pensa ele. Mariana não concebe que o pai, figura central da sua existência, a renegue desta forma. Não acredita que haja mais dignidade em recolher o lixo dos outros do que em servir os seus desejos. Há muito que deixou de ver as coisas assim.
Poderá ainda, um dia, Mariana voltar a correr para ele, com leveza de menina, a perguntar: «Papá, estou bonita?»
Haverá mais dignidade em recolher o lixo dos outros do que em servir os desejos dos outros?